sábado, 2 de outubro de 2010

O Pintor de Segredos - 3

-Hey, você está meio...imunda? -Sorriu Chris ao ajudar a jovem.

Ela provavelmente não gostou muito, pois virou o rosto rápido e se levantou. Claramente seus gestos se mostravam desengonçados, desequilibrados, perdidos. Mais uma vez, o rapaz se aproximou dela e cutucou seu ombro.
-Olha, você pode ir ali do lado de fora, ir para direita do prédio. Tem um vestiário feminino. É onde normalmente os calouros se lavam depois do trote. Vai lá. -De forma gentil, tentou agradar.
Dessa vez, ela o fitou nos olhos, arriscou um sorriso bem forçado e agradeceu. Se retirou quieta, na mansa, e logo atrás algumas outras calouras que observaram de perto a seguiram. Peter logo retornou a conversa.
-Pois é, não quis ficar pra ver o trote, aí eles te tratam assim. Com medo.
-E daí? Acho que tenho algumas coisas mais importantes pra me preocupar...
-Ah, claro. Mas só pra saciar sua curiosidade, apesar de estar tentando reprimí-la, o nome dessa daí é April.

Chris deu de costas para o amigo, dessa vez saindo do prédio efetivamente. Estava com muita fome e realmente não estava nem um pouco preocupado com quem era a garota, embora fosse hipocrisia dizer que os olhos dela não tinham um tom encantador.
A duas quadras da Universidade, uma lanchonete servia um saboroso cachorro-quente, e não era de hoje que este era um point favorito do pintor quando suas lombrigas urravam. Ele se dirigiu para lá, andando calmamente e cumprimentando alguns amigos que também seguiam em bando para o local.

Já era cerca de 16:45h quando o rapaz chegou, se sentou num banco alto em frente à vitrine dos doces e salgados da lanchonete e pediu seu cachorro-quente completo com um refrigerante. Sua mente estava vazia, na medida do possível. Depois de saborear um pouco, alguns leves turbilhões se promoviam em sua mente. Seu misterioso incidente, as aulas chatas, algumas idéias de trabalhos, o tom daqueles olhos...Largando o que estava fazendo, ele deixou o dinheiro do lanche com a moça do caixa e saiu um pouco apressado. Seu ponto era ali perto, e pra lá ele foi. Seu ônibus de volta não demoraria e logo estava ele encarando sua volta. Era melhor apenas descansar sabe.

A noite daquele dia se passou rápida, talvez porque Chris não fez muito além de jogar suas roupas numa cadeira de sua casa, tomar uma chuveirada e tombar na cama. Estranhou todo o cansaço que seu corpo apresentava, ainda era cedo e ele não havia feito nada muito longe de sua rotina. Mas ainda assim, dormiu uma noite tranquila. Lá para as 4h da manhã, sua consciência foi retornando lentamente, primeiro invadindo seu corpo naquela sensação confusa de estar dormindo, mas consciente de tudo ao redor. Depois um dos olhos se abriu. Um bocejo serviu de melodia para a dança de seus braços e pernas se espreguiçando. Por fim, uma coçadinha no olho esquerdo que ainda estava um pouco embaçado. Seu corpo se levantou e ele caminhou até a janela. Deu uma olhada para o lado de fora, percebendo o quão cedo ainda era. Se dirigiu a sala e sentou num sofá. Ligou um pequeno rádio que tinha, sem esperar ouvir muita coisa interessante. Do lado do som, um tripé de pintura ficava guardado. Era bem improvisado e velho, utilizado para pinturas mais caseiras do rapaz. Ele o puxou e deixou em sua frente. O rádio que ficava em cima de uma estante com gavetas foi aberto e dele foram retirados alguns lápis diferenciados, com os quais o rapaz após se sentar começou a rabiscar. Alguns traços mais estreitos, outros mais encorpados. Curvas, retas...pareciam apenas traços independentes, mas aos poucos vestiam um esqueleto imaginário. Todavia, não se foi muito longe, pois o rapaz parou ao ouvir uma notícia que interrompeu a programação normal da emissora de rádio.

"A polícia municipal está reforçada na Alameda John Russel, depois do incidente de ontem com dois jovens estudantes. Um homem vestindo uma roupa larga e que cobria todo o corpo é acusado de assaltar os jovens e ferir gravemente um deles, de apenas 15 anos. Rick, o amigo da vítima, disse que o homem se dirigiu a eles com um punhal na cintura e pediu todo o dinheiro. Como seu amigo reagiu tentando fugir, o homem arremessou a faca nas costas dele, e o garoto sofreu uma perfuração no pulmão esquerdo, estando em estado estável no hospital, mas ainda com risco..."

O resto da notícia já não era mais realmente assimilada por Chris. Alameda John Russel é onde se localiza o ponto de ônibus no qual pega sua condução para a Universidade todo dia. A descrição dada pelo jovem lembra muito o homem que ele viu ontem antes de ir. Só podia ser a mesma pessoa, e ela definitivamente estava disposta a qualquer coisa. O que teria acontecido se o homem não tivesse desistido? Chris se questionava porque isso aconteceu. Tentava raciocionar a respeito, mas nada plausível aparecia. Seu despertador começou a tocar no quarto, e sua consciência retornou para onde estava antes de se distrair. Ele foi até seu cômodo, desligou o relógio, e começou a se preparar para sair.

Estava no mesmo horário de sempre. Ele saiu de casa, trancou-a com sua chave e começou a andar. Estava tenso, olhando para todas as direções. No meio do caminho, teve a idéia de não ir para o mesmo ponto de sempre. E se o homem tivesse uma rota? Tinha que pensar em outro caminho. Ele resolveu contornar o bloco de 4 quadras, ao invés de ir pelo caminho mais curto, que sempre fazia. Desta forma, ele chegaria a um ponto posterior ao que sempre pega o ônibus, e seria o trajeto de sua condução da mesma forma. Embora demorasse cerca de 20 minutos a mais, era o mais sensato em sua mente e assim o fez. Andou, andou e andou, e como imaginava, nada suspeito. Bem, na realidade não imaginava muito isso. Tinha medo, isso sim. Achava que a qualquer momento um homem de sobretudo apareceria pulando em cima dele com uma foice, machado, marreta ou até mesmo uma bigorna. Algo diferente que reparou é que alguns guardas estavam pelo trajeto, algo que não era comum. Seus olhos pareciam os de um detetive, curioso, varriam tudo que podiam. O ponto se aproximava, e num misto de alívio e desconfiança, seus passos se tornavam menos robóticos.

Lá estava ele, no seu ponto e nada tinha acontecido. Os guardas também estavam próximos, sendo que era possível ver um na esquina mais próxima. Tudo em paz, segurança. Parece que foi apenas um incidente mesmo, e não havia com o que se preocupar. Chris sentou-se, puxou a mochila para frente e começou a conferir rapidamente se algo havia lhe faltado à memória. Na correria, isso seria perfeitamente esperado. Abriu um bolso, o estojo, conferiu cadernos, e a caixa com lápis especiais de desenho. Sua prancheta também estava recheada, tudo aparentemente nos conformes. Após isso, só restava dar uma relaxada e esperar o ônibus. Assim o fez, pelo menos pelos cinco minutos que  separaram sua estadia da velha Senhora Briggs. -Nossa, que senhora antipática! -pensava Chris. Ela era dona da Padaria onde o rapaz costumava comprar um lanche da tarde quando recebia visitas. Meio carrancuda, ela mal arriscava dar boa tarde. Provavelmente a única vez que a viu sorrir foi no dia de seu aniversário, quando seu filho chegou para visitá-la no mesmo horário que Chris foi comprar um pão-doce. Bem, fosse como fosse, o dia estava bom demais para ela estragar e se algo realmente foi desejado pelo rapaz, era que ela não o importunasse com seus sermões e intrometimentos. Pois ela se aproximou, olhou na direção dele, e se sentou exatamente ao seu lado, mas não sem antes limpar um pouco o banco. Ao ter sido encarado, Chris fez um movimento de mão em saudação e deu um sorriso bem amarelo, mas ela fingiu não o ter visto. O rapaz definitivamente não ficou nem um pouco preocupado ou triste com isso. Ela, menos ainda, parecendo sequer tê-lo notado. Mais uns 3 minutos passaram e um pombo pousou próximo a ela. Ela olhou ao bicho com desprezo e bateu sua bengala no chão para assustá-lo (aliás, apesar de aparentar uns 60 anos, ela não parecia precisar de uma bengala). Retrucou áspera:

-Bichos imundos. Alguém tinha que exterminá-los. Combinam com as pessoas desse lugar. Mas um dia eu hei de me mudar desse fim-de-mundo e me livrar dessa gente nojenta e esfomeada que tenho que alimentar!

Ela pigarreou, e levantou para fazer sinal ao seu ônibus. O jovem pintor estava abismado com tamanha cara-de-pau! Como ela pudera dizer aquilo tudo com ele do lado dela. Era muito até pra Dona Briggs. Bem, tanto faz. Por sorte ou não, seu ônibus chegara atrás do dela, e lá foi ele para mais um dia.

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