sábado, 28 de agosto de 2010

O Pintor de Segredos - 1

Se tem algo que Chris realmente odeia, é acordar cedo! E não podia ser diferente, afinal, que jovem gosta de ter seus sonhos arrojados interrompidos pelo som metálico e repetitivo de um despertador? Fora o belo salto olímpico dado na cama devido ao susto. Naquele dia, ele não poderia ter feito diferente. Assustado, resmungou alguma coisa indistinguível, acompanhada de um súbito rodopio em sua cama, quase como se tivesse sido empurrado escada abaixo. Sem levantar o braço, apenas arrastando-o pela cama como uma lesma, aproximou a mão do botão cobiçado e desarmou aquela criatura infernal. Era segunda-feira, e o rapaz que tinha ido dormir 3h da madrugada. A missão era acordar para reiniciar sua rotina. O dia lá fora ainda estava escuro e por isso não era necessário abrir as cortinas. Essas nunca eram fechadas. Levantando-se como um verdadeiro zumbi, Chris se dirigiu até seu armário, abriu a porta e começou a selecionar a roupa. Olhou brevemente para um espelho na porta, mas pela forma como desviou o olhar rapidamente, não pareceu ter gostado muito do que viu. Separou uma calça jeans, uma camisa vermelha e um casaco preto com capuz e mangas compridas. Deixou-as esticadas sobre a cama, saiu do quarto e foi escovar os dentes.

Estudante de artes, de 18 anos, Chris está começando o terceiro período de sua faculdade, à qual passou em uma das primeiras colocações, isso devido a sua prova prática na qual mostrou o talento indiscutível que tem: desenhar. Desde pequeno, sempre teve grande paixão pelo lápis, o papel e a imaginação. Começou como qualquer criança, com aqueles desenhos comuns. Papai, mamãe, cachorro e a árvore do quintal. Aos poucos, foi evoluindo: Seus heróis, carros, paisagens, mulheres ( era uma modalidade que ele preferia não mostrar pros pais devido à sua timidez), e por fim, mostrou no que realmente era incrível! Com seus lápis, borrachas, papéis e outros acessórios, Chris era um gênio para desenhar retratos. É claro, podemos levar em consideração que seu berço nobre o ajudou. Nascido numa família de artistas, seus pais eram atores, de grande renome. Graças a isso e sem dúvidas ao seu ótimo desempenho, seus pais deram-no um voto de confiança, permitindo que ele morasse num pequeno apartamento sozinho. Não houve nenhum problema nisso. Ele não era um exímio cozinheiro, ou excelente organizador, mas seu "apê" ainda parecia um "apê".

Depois de escovar os dentes, ajeitar o cabelo (ou melhor, bagunçar de vez) e se arrumar, ele foi até a cozinha e preparou algumas torradas e um copo de leite. Tomou seu café-da-manhã rápido e arrumou as coisas para sair. Apesar de acordar cedo, ele morava um pouco distante da universidade e não gostava de chegar atrasado. Um típico aluno certinho. Não parecia ver problema algum nisso.

A caminhada até o ponto de ônibus intermunicipal não era muito longa. O dia estava um tanto nublado e o vento assobiava com um hálito de Halls preta. A luz começava a ganhar o asfalto e as calçadas. Algumas árvores mais salientes até expunham suas flores para dar um belo colorido ao quadro que era pintado naquela manhã. O jovem rapaz, que caminhava quase solitário até o ponto, gostava de andar admirando a paisagem, reparando em cada detalhe para alimentar sua imaginação esfomeada e compulsiva. Sua respiração profunda parecia querer captar a fragrância da grama que alguns quintais tinham, o perfume de cada flor e até mesmo o cheirinho da chuva que estava começando a cair. Quando alguns pingos pesados golpearam seus ombros, o garoto, um tanto quanto contrariado, jogou o capuz sobre seu des-penteado. Após cerca de 20 minutos, chegou no ponto de ônibus que interessava. Se encostou uma estreita pilastra que segurava a cobertura do ponto e ficou quieto, solitário. Esperava seu ônibus, que pelo horário, não demoraria a chegar. Puxou uma das moedas que tinha no bolso separada para sua passagem e começou a brincar, jogando-a para o alto com o polegar e pegando. Repetiu isso algumas vezes, e então, de súbito, parou ao observar uma sombra ao longe, na mesma calçada que ele estava. Era um homem, com barba mal feita e todo coberto por um sobretudo de couro. Ele olhou direta e fixamente para Chris, deixando fluir claramente seu desenteresse pelo ponto de ônibus. O jovem desenhista não achou aquilo um bom sinal. Olhou para os lados rápido e depois para trás, mas realmente aquela silhueta lhe parecia a coisa mais próxima que seus olhos conseguiam distinguir. E isso definitivamente não era animador. Uma enxurrada de adrenalina pareceu ter sido injetada na corrente sanguínea. Suas pupilas rapidamente se dilataram, e seus olhos não pareciam lembrar de piscar. O coração disparou e as pernas ficaram levemente trêmulas. Quando observou novamente o homem, o sobretudo que o cobria deixou fugir o brilho de um punhal preso ao cinto que sustentava suas calças. A única coisa que vinha à mente de Chris era "Corre. Corre. Corre!". Mas ele não o fez. Por outro lado, o homem estava se aproximando dele, e da mesma forma que o jovem, rastreou o raio que seus olhos podiam alcançar em todas as direções. Sua mão foi à cintura, na direção do punhal, e seu rosto se voltou para trás, vistoriando pela última vez suas costas. Nesse exato momento, Chris percebeu que era a hora de correr. Mas e se o homem percebesse e ficasse ainda mais interessado? O ônibus talvez passasse e o salvasse. Mas e se não fosse o caso? O garoto engoliu em seco mais uma vez, fechou os olhos e apertou a mão fechada. Abriu os olhos sério, sem medo (ou fingindo não ter) e encarou o homem que se aproximava. Por algum motivo, o homem estava com uma expressão diferente. Ele olhou exatamente para Chris, mas não tinha o mesmo olhar de antes. Tinha um olhar de curiosidade, porém não focado. Olhou para os lados novamente. Deu uma corrida até o ponto, no que Chris correu rápido para trás do banco onde as pessoas podiam sentar e esperar o transporte. Eram 2 metros de distância, mas de forma extremamente estranha, Chris se agachou e ficou atrás do banco. Não acreditava que fosse o suficiente pra ficar escondido, mas não se moveu. O homem fez um estalo de reprovação com a boca e se retirou chutando o chão.

O que aconteceu? Chris se perguntava. É claro que aquele homem queria, no mínimo, assaltá-lo. E também era óbvio demais que o banco não era tão grande para impedí-lo. Seja o que tenha sido, foi uma benção para o jovem. Talvez tenha cara de pobre. Agora, mais relaxado, sentou-se no banco, e em cerca de 5 minutos, ficou pensando a respeito. Então, quebrando seu momento de concentração, duas grandes laternas acesas se aproximavam. Era seu ônibus. Mais tranquilo e deixando escapar um sorriso no rosto, Chris fez sinal e pôs a outra mão no bolso para pegar a grana, praticamente rindo à toa. O ônibus não parou. Na verdade o motorista parecia ter ignorado o apelo do balançar de braços de Chris.

É, hoje é um dia para se chegar atrasado.