quarta-feira, 8 de setembro de 2010

O Pintor de Segredos - 2

Algo muito estranho deve ter acontecido. Apesar de um pouco nublado, não estava tão enevoado para ser ignorado pelas pessoas a 2 metros de distância. O jovem se questionou se estava no ponto de ônibus certo, se não havia mudado a parada do seu ônibus. Ele começou a andar em direção ao próximo, que não era tão distante. A leve chuva que antes caiu já tinha cessado e então, para sua satisfação, o rapaz jogou o capuz para trás. Odiava ter seu "despenteado" estragado. Desanimado, Chris se deslocava mais arrastando o pé do que propriamente andando. No meio do caminho, um pequeno cachorro, vira-lata malhado em alvinegro, parou para cheirar uma pequena árvore que estava crescendo próximo a calçada. Aliás, cheirar não foi sua maior preocupação. Rapidamente ele ergueu sua pata traseira direita e...bem, não é muito difícil entender. Após uma risada leve e imaginar o que o dono da casa percebendo mais tarde o ocorrido, Chris se agachou e estalou os dedos tentando atrair a atenção do animal. Nada aconteceu novamente. Estava fora de cogitação a névoa. E de qualquer forma, cachorros normalmente são atraídos sem muito esforço. Pelo menos um olhar ele deveria ter recebido, mas nada aconteceu. Indignado, o jovem se aproximou do cachorro e tentou acariciá-lo. Ao fazê-lo, o cachorro bruscamente pulou para trás e correu um pouco, se afastando e latindo. Olhou novamente na direção do estudante, atordoado, rosnou e correu desenfreadamente.

Primeiro o assaltante. Depois os ônibus. Duas pessoas nesse meio tempo pareciam fingir que Chris era um fantasma. O cachorro só reagiu ao toque do rapaz. Mas que diabos está acontecendo comigo? Pensava inconformado. Já com o ponto de ônibus a sua vista, embora desacreditado, acenou. Além do veículo ter parado, o motorista ainda cumprimentou-o com um amistoso sorriso.

-Dia! -Disse o velho conhecido Joel, motorista que muitas vezes já conversou sobre futebol com Chris durante suas viagens.
-Ah, dia Joel. Cara, me tira uma dúvida? Estou estranho?

O amigo deu uma breve gargalhada e negou com a cabeça sem falar nada. Confuso, porém decidido a ignorar tudo que aconteceu, Chris passou pela roleta, sentou no banco e ficou próximo a janela do ônibus observando o lado de fora. Seu braço ficou levemente exposto, só a ponta do cotovelo, mas seu pensamento parecia ter saltado como um golfinho que se projeta para fora da água. Era engraçado para ele como as coisas aconteciam. Em meio a toda essa manhã anormal, o vento batia em seu rosto impiedosamente durante a viagem e seus olhos fechados permitiam a ele ver desenhos, formas. E lá foi ele, puxando uma prancheta com um papel em branco, fazendo seus rabiscos.

Duas horas depois, Chris despertou meio que no susto. Percebeu então que definitivamente, algumas horas de sono estavam lhe fazendo muita falta. Sorte dele que estava bem próximo da sua Universidade, em não mais de 10 minutos, estaria de volta. Rever os amigos, um ótimo motivo para estar ali. Fora que teria a chance de aprender coisas interessantíssimas, que faziam dele nunca duvidar de que escolhera a coisa certa. Exceto história da arte visual, definitivamente um saco! Filosofia da educação também não era sua matéria favorita, apesar de que algumas vezes lendo sem compromisso alguns títulos de filosofia, o rapaz tivera inspiração pra arriscar uns traços. Muito bem lembrado por sinal. O desenho que começou a fazer no ônibus estava um pouco babado, manchando a tinta. É, até os bons artistas precisam sacrificar algumas cobaias...

A Universidade de Saint Jordan já podia ser vista. Aquele tumulto único de volta às aulas, uma nuvem de alunos ocupando o estacionamento e o pátio principal, dentro da entrada. O grande complexo de prédios em formato circular, como uma torre extremamente larga e com apenas 8 andares, provavelmente estava com poucos alunos. Primeiro dia, como de costume, a atenção foge um pouco às aulas e se foca muito mais no trote. Embora fosse realmente divertido ver as prendas  pagas pelos alunos novatos, as brincadeiras e principalmente eles lambuzados de tinta, Chris não era muito interessado nisso. Preferia ir para sua aula e aprender ao máximo. Fazia parte dos que julgava mais correto devido ao esforço de seus pais em lhe ajudar a se manter sozinho. Ele caminhou cumprimentando os companheiros e amigos de sempre que apareciam no caminho, mas não se segurou muito a nem um. Próximo ao núcleo de artes, uma roda de veteranos cercava aproximadamente uns 25 alunos, os calouros. Antes de entrar, uma breve olhada foi quase involuntária, observando bem os novos colegas. Foi realmente uma checagem rápida. Alguns bem diferentes, um oriental de cabelo colorido, que provavelmente ficaria ainda mais colorido, uma bela jovem de cabelos bem cacheados e pele escura, com olhos esmeralda. Uma ruiva de cabelo curto e que estava discutindo já com os outros, um pequeno rapaz com cara de assustado...Vários outros não tão expressivos, mas que com certeza construirão seis meses interessantes para a faculdade. Um pouco antes de desistir de ver a cerimônia e se preparar para as aulas, a ruiva parou de discutir com quem a incomodava e saiu do local onde estava. Uma jovem de cabelos castanhos bem claros estava sentada atrás dela. Sua pele era levemente bronzeada, e seu olhar assim como dos amigos, parecia querer descobrir tudo que poderia estar oculto. Ela sorriu prestando atenção no xilique que sua amiga dava, e por um segundo, ao rotacionar sua visão, avistou Chris. Seus olhos por um breve momento encontraram os do jovem pintor, mas não se demoraram. Ele percebeu e, naquele instante, cogitou permanecer. Os olhos dela, azuis-violetas, eram diferentes, como nunca sequer havia imaginado pintar. Talvez uma oportunidade futura para uma bela tela. Enquanto ele pensava no assunto, um soquinho leve acertou seu ombro.

-E aí coiote? Escolhendo a presa?

Era Peter. Um amigo de classe de Christopher. Os dois já se davam bem há bastante tempo. No começo não eram muito próximos, até chegaram a discutir. Meio debochado em alguns casos, era uma pessoa que se aproximou graças ao tempo e, de forma inusitada, se tornou alguém de confiança. Os dois deram uma risada, compartilhando o mesmo pensamento. Em particular, havia algo na cabeça de Chris para ser dito. O que Peter pensaria sobre o que houve hoje mais cedo? Na verdade o próprio garoto já se questionava se aquilo havia realmente acontecido. Mergulhado num silêncio seco, ele se retirou a passos pesados partindo para sua aula.

As horas naquela tarde se seguiam como costumavam seguir todos os dias em período de aula. Todavia, nos pensamentos o tempo se arrastava lentamente, como se quisesse levar tudo ao redor consigo. Começava a incomodar já, e sabiamente Chris resolveu tentar esquecer de vez. É óbvio que tinha sido apenas coincidência. Aquilo não teria acontecido como imaginara. A tensão do momento o fez ver de uma forma que distorceu os fatos reais. Martelando isso na cabeça, tentando se convencer de que essa era a verdade, ele saiu da sua querida aula de história da arte visual, que parecia mais interessante quando não era levada a sério. Então, para definitivamente refrescar sua cabeça, nada melhor do que uma folha (cuidadosamente disfarçada) e o lápis. E lá foi ele, rabiscando, rabiscando e rabiscando. A hora passou rápido e um pouquinho de peso na consciência até o beliscou, mas paciência. Não pensara mais no assunto e, enquanto estava fazendo a sombra no pescoço gerada pelo cabelo de uma jovem, percebeu o barulho de fichários se fechando e cadeiras se deslocando. Sua última aula do dia havia acabado. Guardou os materiais e se retirou rapidamente.

Passando pelos corredores, encontrou e cumprimentou mais colegas de curso. Novamente, lá na frente vinha Peter. Ele estava rindo à toa, como de costume, com o braço no ombro de uma amiga. Esta era a bela Nicole. Uma das beldades da turma dos dois, era loira de longos cabelos lisos e olhos azuis. Os pais sonhavam desde que ela era pequena que fosse modelo, mas a jovem nunca foi muito adepta de viver trancafiada numa realidade onde comer era pecado. Não que isso fosse perceptível. Seu corpo era realmente viável, embora tivesse curvas que não são tão bem quistas na passarela. Magreza em excesso sempre foi uma preferência maior. Era extrovertida e animada, qualidades somadas à todas as outras que faziam com que Chris se perguntasse como ela e Peter nunca foram além de uma amizade. Bem, provavelmente o mundo - ou pelo menos Saint Jordan - não aguentariam essa aliança. De qualquer jeito, no meio do caminho, ela saiu e parou para conversar com outras amigas, e Peter se aproximou sozinho.

-E aí, Christ? Como foi a aula?
-Chris. Chris, você sabe que eu não curto esse apelido!
-Hahaha, ok Chris, ok!
-Ah, cara, não tava com muita cabeça pra isso. Foram meio chatas, sei lá.

Bem, implicar com o apelido de Chris já era coisa batida para Peter, mas a forma como ele olhou após a reação do amigo realmente era chamativo. Acostumado com tudo e todos, não era comum  ouvir Chris dizer que não estava com cabeça para as aulas também não era algo do cotidiano. Peter sorriu, tentando disfarçar, mas o assunto foi realmente quebrado quando a gritaria dos calouros sendo puxados pelos veteranos ecoou no corredor. Todos sujos, enlameados e pintados, eles vinha fazendo uma fila diferenciada, em forma de "elefantinho". Agachados e com uma das mãos passando entre as próprias pernas, para o companheiro de trás segurar com uma das mãos e fazer o mesmo com a outra. Provavelmente estavam indo recolher as coisas, aos berros e esporros de seus veteranos. Eles vinham um pouco desequilibrados e enquanto passavam perto, um dos calouros tropeçou, caindo e empurrando seus companheiros. Chris e Peter que observavam, tentaram ajudá-lo, embora um pouco de receio por toda aquela lama os importunasse. Estendendo a mão, o retratista auxiliou uma espécie de abelha que provavelmente tinha caído da colmeia em uma trincheira. Provavelmente algo desse tipo fora a inspiração para a arte naquela jovem. Mas quando aquele par de olhos únicos o encararam, os olhos do artista se iluminaram.

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