domingo, 28 de maio de 2017

IV

A Universidade de Saint Jordan era uma referência em na área de artes. Cursos de Artes plásticas, Artes cênicas e música eram de ponta e extremamente concorridos. Diversos nomes conhecidos mundialmente já passaram por lá e, de maneira geral, todos os que caminhavam pelos corredores e bosques da universidade nos dias atuais, almejavam um futuro semelhante. A paixão de Chris e o seu talento já era de conhecimento de muitos. Isso fazia com que ele se tornasse um aluno querido por diversos tutores, inclusive a senhora Elizabeth Crown, uma Doutora em Arte plásticas. Beth, era uma senhora entre 60 e 70 anos de idade, muita conhecida na universidade por lecionar várias disciplinas nos cursos de artes. Possui estatura baixa, cabelos curtos e grisalhos. Embora com a pele e aparência bem cuidadas para idade, se orgulhava de sua experiência de vida. No período em que Chris se encontrava, ela ministrava a disciplina Teoria e Crítica da Arte Contemporânea, e tinha o jovem como um de seus alunos favoritos.
Naquela manhã, discutiam em sala crítica institucional e arte contemporânea. Dr. Beth gostava de iniciar suas aulas climatizando as suas turmas a respeito do tema, trazendo pequenas cenas da vida real do profissional e então abrindo para discussões, sempre fervorosas. Não foi diferente dessa vez, com a participação de muitos alunos. Peter, como sempre, fazia questionamentos inteligentes e muitas vezes gerava ganchos de discussão que faziam com que embates surgissem, principalmente com Chris. Essa troca constante de ideias e muitas vezes de pontos de vista diferenciados era talvez um dos principais combustíveis para a amizade entre os dois. Se Chris planejava se tornar um grande artista, com quadros cobiçados internacionalmente, Peter tinha um interesse em trabalhar com a economia das artes, rotulando grandes obras como grandes fortunas e outras como fracasso total – e o rapaz tinha competência para tal, possuindo um inegável conhecimento de referências históricas de arte e estilos, tanto para quadros e painéis quanto para modelagem. É claro, a amizade deles não era apenas embasada em discussões, uma boa cerveja aos finais de semana também gerava embates mais amenos e muitas risadas.
A manhã passara tão agradável para Chris que ele por alguns momentos chegou a se esquecer das estranhezas que cercaram recentemente. Durante a tarde, alguns amigos se reuniram em um tempo vago para conversar, pois já estavam em clima de ir final de aula (apenas mais dois tempos naquele dia os separavam do caminho de casa), mas ele preferiu se isolar em um bosque da universidade com sua prancheta e material, para refletir em uma folha um pouco do que sua mente guardara. Os traços cortavam o papel como o vento matutino corta folhas de um campo: pequenas pinceladas que assobiam, mas pela ausência de quem as ouça, fazem silêncio. Pretos, tons de marrom, tons mais pálidos.... Aos poucos a forma do homem que surgira naquele ponto de ônibus ia se construindo. Claro, tendo em vista o tempo e o improviso, eram apenas rabiscos e rascunhos. O jovem se concentrava com tamanho empenho, que parecia estar trancado em silêncio no seu quarto. Distraído, se assustou ao ouvir o sino da universidade indicando o fim da última aula daquela tarde. Sem perceber, ficou quase três horas no bosque, isolado. Ao voltar para o mundo real, percebeu o fim de tarde e que outras pessoas estavam ao redor dele no bosque, distraídas em seus próprios quartos imaginários.
Seguindo o caminho até o ponto de ônibus, novamente Chris cruzou com seu amigo Peter.
-Chris, o que houve? O dormiu demais? É bom lavar essa cara antes que alguma menina te veja assim! -Brincou Peter
-Eu me distraí pintando, idiota. Você poderia ter me chamado, sabia que eu estava no bosque. -Retrucou Chris.
-Cara, eu não sei do que você está falando. Mas com certeza no bosque você não estava, porque eu e a Nicole passamos por lá te procurando e não te vimos. Pode parar de caô, a gente sabe que você deu um perdido com alguma garota!

Chris riu da brincadeira e corou levemente o rosto. Porém ele não havia saído do bosque, estava lá o tempo inteiro. Provavelmente Peter não o viu no meio de outros tantos alunos que estavam lá. O clima do bosque, às vezes, é um pouco incômodo para Chris. Quando chegara nesta tarde para se distrair, o local estava vazio e aconchegante. Mas no geral, é um refúgio para diversos casais. Chegar ao local nessas condições incomodava um pouco pela timidez do rapaz. E, embora Peter fosse muito mais extrovertido, Chris achou que talvez o amigo tivesse procurado em um desses momentos (embora ele não tenha reparado enquanto estava em seu “quarto”), não estando à vontade para permanecer no local. Ou talvez tivesse permanecido ocupado demais.
-Talvez a Nicole tenha ocupado a visão dele. -Pensou Chris, segurando o riso para não se expor aos amigos.
Os três caminharam rumo ao ponto de ônibus. Quando se sentaram, a pasta do rapaz abriu e deixou cair a prancheta com o que havia desenhado durante a tarde. Rapidamente o jovem tentou recuperar os desenhos, mas os olhos dos amigos foram mais velozes.

-Eita, do que se trata? Você realmente ficou a tarde toda pintando desenhos? – Questionou Peter. – Que desperdício de falta, Chris.
-Sim. Eu disse que estava no bosque.

Nicole pediu o desenho, estava mais interessada que Peter. Logo após observar, ela pegou o celular e abriu um aplicativo de stream de vídeos, procurando algo. Peter e Chris se entreolharam, e o jovem pintor já imaginava o que aconteceria, tentando puxar o desenho novamente.
-Chris! Esse seu desenho é muito parecido com um rapaz que descreveram num crime próximo de onde você mora! Por acaso você o viu ou esse desenho é da sua imaginação?

Tudo que acontecera naquele dia, havia ficado apenas na memória de Chris. Ele não tinha o interesse de compartilhar o acontecido, até porque ele podia estar inventando ou aumentando coisas que o desespero não o permitir perceber. E, afinal, motoristas de ônibus mal-educados aparecem todos os dias por aí. Logo não havia nada demais para ser dito.
-É verdade, vocês me pegaram. Dessa vez sou culpado, não foi minha criatividade. Mas ouvi a notícia no rádio quando vinha para a faculdade essa manhã, e descreveram o criminoso. Aí fiquei com isso na cabeça, ele parecia ter um visual sorrateiro. Acho que nunca pintei algo assim...-tentou inventar uma história na hora e se mostrar seguro de sua versão.
Nicole e Peter se entreolharam e não deixaram claro se haviam acreditar ou não. Mas aparentemente não havia motivo para questionar a versão de Chris.
-Bem, caso você seja um fiasco como pintor, pode fazer retrato falado na polícia. De fome você não morre, amigo. -Debochou Peter como uma risada escandalosa, porém amigável.


Chris ficou sem graça, mas achou que essa era a melhor versão dos fatos. 

sábado, 2 de outubro de 2010

O Pintor de Segredos - 3

-Hey, você está meio...imunda? -Sorriu Chris ao ajudar a jovem.

Ela provavelmente não gostou muito, pois virou o rosto rápido e se levantou. Claramente seus gestos se mostravam desengonçados, desequilibrados, perdidos. Mais uma vez, o rapaz se aproximou dela e cutucou seu ombro.
-Olha, você pode ir ali do lado de fora, ir para direita do prédio. Tem um vestiário feminino. É onde normalmente os calouros se lavam depois do trote. Vai lá. -De forma gentil, tentou agradar.
Dessa vez, ela o fitou nos olhos, arriscou um sorriso bem forçado e agradeceu. Se retirou quieta, na mansa, e logo atrás algumas outras calouras que observaram de perto a seguiram. Peter logo retornou a conversa.
-Pois é, não quis ficar pra ver o trote, aí eles te tratam assim. Com medo.
-E daí? Acho que tenho algumas coisas mais importantes pra me preocupar...
-Ah, claro. Mas só pra saciar sua curiosidade, apesar de estar tentando reprimí-la, o nome dessa daí é April.

Chris deu de costas para o amigo, dessa vez saindo do prédio efetivamente. Estava com muita fome e realmente não estava nem um pouco preocupado com quem era a garota, embora fosse hipocrisia dizer que os olhos dela não tinham um tom encantador.
A duas quadras da Universidade, uma lanchonete servia um saboroso cachorro-quente, e não era de hoje que este era um point favorito do pintor quando suas lombrigas urravam. Ele se dirigiu para lá, andando calmamente e cumprimentando alguns amigos que também seguiam em bando para o local.

Já era cerca de 16:45h quando o rapaz chegou, se sentou num banco alto em frente à vitrine dos doces e salgados da lanchonete e pediu seu cachorro-quente completo com um refrigerante. Sua mente estava vazia, na medida do possível. Depois de saborear um pouco, alguns leves turbilhões se promoviam em sua mente. Seu misterioso incidente, as aulas chatas, algumas idéias de trabalhos, o tom daqueles olhos...Largando o que estava fazendo, ele deixou o dinheiro do lanche com a moça do caixa e saiu um pouco apressado. Seu ponto era ali perto, e pra lá ele foi. Seu ônibus de volta não demoraria e logo estava ele encarando sua volta. Era melhor apenas descansar sabe.

A noite daquele dia se passou rápida, talvez porque Chris não fez muito além de jogar suas roupas numa cadeira de sua casa, tomar uma chuveirada e tombar na cama. Estranhou todo o cansaço que seu corpo apresentava, ainda era cedo e ele não havia feito nada muito longe de sua rotina. Mas ainda assim, dormiu uma noite tranquila. Lá para as 4h da manhã, sua consciência foi retornando lentamente, primeiro invadindo seu corpo naquela sensação confusa de estar dormindo, mas consciente de tudo ao redor. Depois um dos olhos se abriu. Um bocejo serviu de melodia para a dança de seus braços e pernas se espreguiçando. Por fim, uma coçadinha no olho esquerdo que ainda estava um pouco embaçado. Seu corpo se levantou e ele caminhou até a janela. Deu uma olhada para o lado de fora, percebendo o quão cedo ainda era. Se dirigiu a sala e sentou num sofá. Ligou um pequeno rádio que tinha, sem esperar ouvir muita coisa interessante. Do lado do som, um tripé de pintura ficava guardado. Era bem improvisado e velho, utilizado para pinturas mais caseiras do rapaz. Ele o puxou e deixou em sua frente. O rádio que ficava em cima de uma estante com gavetas foi aberto e dele foram retirados alguns lápis diferenciados, com os quais o rapaz após se sentar começou a rabiscar. Alguns traços mais estreitos, outros mais encorpados. Curvas, retas...pareciam apenas traços independentes, mas aos poucos vestiam um esqueleto imaginário. Todavia, não se foi muito longe, pois o rapaz parou ao ouvir uma notícia que interrompeu a programação normal da emissora de rádio.

"A polícia municipal está reforçada na Alameda John Russel, depois do incidente de ontem com dois jovens estudantes. Um homem vestindo uma roupa larga e que cobria todo o corpo é acusado de assaltar os jovens e ferir gravemente um deles, de apenas 15 anos. Rick, o amigo da vítima, disse que o homem se dirigiu a eles com um punhal na cintura e pediu todo o dinheiro. Como seu amigo reagiu tentando fugir, o homem arremessou a faca nas costas dele, e o garoto sofreu uma perfuração no pulmão esquerdo, estando em estado estável no hospital, mas ainda com risco..."

O resto da notícia já não era mais realmente assimilada por Chris. Alameda John Russel é onde se localiza o ponto de ônibus no qual pega sua condução para a Universidade todo dia. A descrição dada pelo jovem lembra muito o homem que ele viu ontem antes de ir. Só podia ser a mesma pessoa, e ela definitivamente estava disposta a qualquer coisa. O que teria acontecido se o homem não tivesse desistido? Chris se questionava porque isso aconteceu. Tentava raciocionar a respeito, mas nada plausível aparecia. Seu despertador começou a tocar no quarto, e sua consciência retornou para onde estava antes de se distrair. Ele foi até seu cômodo, desligou o relógio, e começou a se preparar para sair.

Estava no mesmo horário de sempre. Ele saiu de casa, trancou-a com sua chave e começou a andar. Estava tenso, olhando para todas as direções. No meio do caminho, teve a idéia de não ir para o mesmo ponto de sempre. E se o homem tivesse uma rota? Tinha que pensar em outro caminho. Ele resolveu contornar o bloco de 4 quadras, ao invés de ir pelo caminho mais curto, que sempre fazia. Desta forma, ele chegaria a um ponto posterior ao que sempre pega o ônibus, e seria o trajeto de sua condução da mesma forma. Embora demorasse cerca de 20 minutos a mais, era o mais sensato em sua mente e assim o fez. Andou, andou e andou, e como imaginava, nada suspeito. Bem, na realidade não imaginava muito isso. Tinha medo, isso sim. Achava que a qualquer momento um homem de sobretudo apareceria pulando em cima dele com uma foice, machado, marreta ou até mesmo uma bigorna. Algo diferente que reparou é que alguns guardas estavam pelo trajeto, algo que não era comum. Seus olhos pareciam os de um detetive, curioso, varriam tudo que podiam. O ponto se aproximava, e num misto de alívio e desconfiança, seus passos se tornavam menos robóticos.

Lá estava ele, no seu ponto e nada tinha acontecido. Os guardas também estavam próximos, sendo que era possível ver um na esquina mais próxima. Tudo em paz, segurança. Parece que foi apenas um incidente mesmo, e não havia com o que se preocupar. Chris sentou-se, puxou a mochila para frente e começou a conferir rapidamente se algo havia lhe faltado à memória. Na correria, isso seria perfeitamente esperado. Abriu um bolso, o estojo, conferiu cadernos, e a caixa com lápis especiais de desenho. Sua prancheta também estava recheada, tudo aparentemente nos conformes. Após isso, só restava dar uma relaxada e esperar o ônibus. Assim o fez, pelo menos pelos cinco minutos que  separaram sua estadia da velha Senhora Briggs. -Nossa, que senhora antipática! -pensava Chris. Ela era dona da Padaria onde o rapaz costumava comprar um lanche da tarde quando recebia visitas. Meio carrancuda, ela mal arriscava dar boa tarde. Provavelmente a única vez que a viu sorrir foi no dia de seu aniversário, quando seu filho chegou para visitá-la no mesmo horário que Chris foi comprar um pão-doce. Bem, fosse como fosse, o dia estava bom demais para ela estragar e se algo realmente foi desejado pelo rapaz, era que ela não o importunasse com seus sermões e intrometimentos. Pois ela se aproximou, olhou na direção dele, e se sentou exatamente ao seu lado, mas não sem antes limpar um pouco o banco. Ao ter sido encarado, Chris fez um movimento de mão em saudação e deu um sorriso bem amarelo, mas ela fingiu não o ter visto. O rapaz definitivamente não ficou nem um pouco preocupado ou triste com isso. Ela, menos ainda, parecendo sequer tê-lo notado. Mais uns 3 minutos passaram e um pombo pousou próximo a ela. Ela olhou ao bicho com desprezo e bateu sua bengala no chão para assustá-lo (aliás, apesar de aparentar uns 60 anos, ela não parecia precisar de uma bengala). Retrucou áspera:

-Bichos imundos. Alguém tinha que exterminá-los. Combinam com as pessoas desse lugar. Mas um dia eu hei de me mudar desse fim-de-mundo e me livrar dessa gente nojenta e esfomeada que tenho que alimentar!

Ela pigarreou, e levantou para fazer sinal ao seu ônibus. O jovem pintor estava abismado com tamanha cara-de-pau! Como ela pudera dizer aquilo tudo com ele do lado dela. Era muito até pra Dona Briggs. Bem, tanto faz. Por sorte ou não, seu ônibus chegara atrás do dela, e lá foi ele para mais um dia.

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

O Pintor de Segredos - 2

Algo muito estranho deve ter acontecido. Apesar de um pouco nublado, não estava tão enevoado para ser ignorado pelas pessoas a 2 metros de distância. O jovem se questionou se estava no ponto de ônibus certo, se não havia mudado a parada do seu ônibus. Ele começou a andar em direção ao próximo, que não era tão distante. A leve chuva que antes caiu já tinha cessado e então, para sua satisfação, o rapaz jogou o capuz para trás. Odiava ter seu "despenteado" estragado. Desanimado, Chris se deslocava mais arrastando o pé do que propriamente andando. No meio do caminho, um pequeno cachorro, vira-lata malhado em alvinegro, parou para cheirar uma pequena árvore que estava crescendo próximo a calçada. Aliás, cheirar não foi sua maior preocupação. Rapidamente ele ergueu sua pata traseira direita e...bem, não é muito difícil entender. Após uma risada leve e imaginar o que o dono da casa percebendo mais tarde o ocorrido, Chris se agachou e estalou os dedos tentando atrair a atenção do animal. Nada aconteceu novamente. Estava fora de cogitação a névoa. E de qualquer forma, cachorros normalmente são atraídos sem muito esforço. Pelo menos um olhar ele deveria ter recebido, mas nada aconteceu. Indignado, o jovem se aproximou do cachorro e tentou acariciá-lo. Ao fazê-lo, o cachorro bruscamente pulou para trás e correu um pouco, se afastando e latindo. Olhou novamente na direção do estudante, atordoado, rosnou e correu desenfreadamente.

Primeiro o assaltante. Depois os ônibus. Duas pessoas nesse meio tempo pareciam fingir que Chris era um fantasma. O cachorro só reagiu ao toque do rapaz. Mas que diabos está acontecendo comigo? Pensava inconformado. Já com o ponto de ônibus a sua vista, embora desacreditado, acenou. Além do veículo ter parado, o motorista ainda cumprimentou-o com um amistoso sorriso.

-Dia! -Disse o velho conhecido Joel, motorista que muitas vezes já conversou sobre futebol com Chris durante suas viagens.
-Ah, dia Joel. Cara, me tira uma dúvida? Estou estranho?

O amigo deu uma breve gargalhada e negou com a cabeça sem falar nada. Confuso, porém decidido a ignorar tudo que aconteceu, Chris passou pela roleta, sentou no banco e ficou próximo a janela do ônibus observando o lado de fora. Seu braço ficou levemente exposto, só a ponta do cotovelo, mas seu pensamento parecia ter saltado como um golfinho que se projeta para fora da água. Era engraçado para ele como as coisas aconteciam. Em meio a toda essa manhã anormal, o vento batia em seu rosto impiedosamente durante a viagem e seus olhos fechados permitiam a ele ver desenhos, formas. E lá foi ele, puxando uma prancheta com um papel em branco, fazendo seus rabiscos.

Duas horas depois, Chris despertou meio que no susto. Percebeu então que definitivamente, algumas horas de sono estavam lhe fazendo muita falta. Sorte dele que estava bem próximo da sua Universidade, em não mais de 10 minutos, estaria de volta. Rever os amigos, um ótimo motivo para estar ali. Fora que teria a chance de aprender coisas interessantíssimas, que faziam dele nunca duvidar de que escolhera a coisa certa. Exceto história da arte visual, definitivamente um saco! Filosofia da educação também não era sua matéria favorita, apesar de que algumas vezes lendo sem compromisso alguns títulos de filosofia, o rapaz tivera inspiração pra arriscar uns traços. Muito bem lembrado por sinal. O desenho que começou a fazer no ônibus estava um pouco babado, manchando a tinta. É, até os bons artistas precisam sacrificar algumas cobaias...

A Universidade de Saint Jordan já podia ser vista. Aquele tumulto único de volta às aulas, uma nuvem de alunos ocupando o estacionamento e o pátio principal, dentro da entrada. O grande complexo de prédios em formato circular, como uma torre extremamente larga e com apenas 8 andares, provavelmente estava com poucos alunos. Primeiro dia, como de costume, a atenção foge um pouco às aulas e se foca muito mais no trote. Embora fosse realmente divertido ver as prendas  pagas pelos alunos novatos, as brincadeiras e principalmente eles lambuzados de tinta, Chris não era muito interessado nisso. Preferia ir para sua aula e aprender ao máximo. Fazia parte dos que julgava mais correto devido ao esforço de seus pais em lhe ajudar a se manter sozinho. Ele caminhou cumprimentando os companheiros e amigos de sempre que apareciam no caminho, mas não se segurou muito a nem um. Próximo ao núcleo de artes, uma roda de veteranos cercava aproximadamente uns 25 alunos, os calouros. Antes de entrar, uma breve olhada foi quase involuntária, observando bem os novos colegas. Foi realmente uma checagem rápida. Alguns bem diferentes, um oriental de cabelo colorido, que provavelmente ficaria ainda mais colorido, uma bela jovem de cabelos bem cacheados e pele escura, com olhos esmeralda. Uma ruiva de cabelo curto e que estava discutindo já com os outros, um pequeno rapaz com cara de assustado...Vários outros não tão expressivos, mas que com certeza construirão seis meses interessantes para a faculdade. Um pouco antes de desistir de ver a cerimônia e se preparar para as aulas, a ruiva parou de discutir com quem a incomodava e saiu do local onde estava. Uma jovem de cabelos castanhos bem claros estava sentada atrás dela. Sua pele era levemente bronzeada, e seu olhar assim como dos amigos, parecia querer descobrir tudo que poderia estar oculto. Ela sorriu prestando atenção no xilique que sua amiga dava, e por um segundo, ao rotacionar sua visão, avistou Chris. Seus olhos por um breve momento encontraram os do jovem pintor, mas não se demoraram. Ele percebeu e, naquele instante, cogitou permanecer. Os olhos dela, azuis-violetas, eram diferentes, como nunca sequer havia imaginado pintar. Talvez uma oportunidade futura para uma bela tela. Enquanto ele pensava no assunto, um soquinho leve acertou seu ombro.

-E aí coiote? Escolhendo a presa?

Era Peter. Um amigo de classe de Christopher. Os dois já se davam bem há bastante tempo. No começo não eram muito próximos, até chegaram a discutir. Meio debochado em alguns casos, era uma pessoa que se aproximou graças ao tempo e, de forma inusitada, se tornou alguém de confiança. Os dois deram uma risada, compartilhando o mesmo pensamento. Em particular, havia algo na cabeça de Chris para ser dito. O que Peter pensaria sobre o que houve hoje mais cedo? Na verdade o próprio garoto já se questionava se aquilo havia realmente acontecido. Mergulhado num silêncio seco, ele se retirou a passos pesados partindo para sua aula.

As horas naquela tarde se seguiam como costumavam seguir todos os dias em período de aula. Todavia, nos pensamentos o tempo se arrastava lentamente, como se quisesse levar tudo ao redor consigo. Começava a incomodar já, e sabiamente Chris resolveu tentar esquecer de vez. É óbvio que tinha sido apenas coincidência. Aquilo não teria acontecido como imaginara. A tensão do momento o fez ver de uma forma que distorceu os fatos reais. Martelando isso na cabeça, tentando se convencer de que essa era a verdade, ele saiu da sua querida aula de história da arte visual, que parecia mais interessante quando não era levada a sério. Então, para definitivamente refrescar sua cabeça, nada melhor do que uma folha (cuidadosamente disfarçada) e o lápis. E lá foi ele, rabiscando, rabiscando e rabiscando. A hora passou rápido e um pouquinho de peso na consciência até o beliscou, mas paciência. Não pensara mais no assunto e, enquanto estava fazendo a sombra no pescoço gerada pelo cabelo de uma jovem, percebeu o barulho de fichários se fechando e cadeiras se deslocando. Sua última aula do dia havia acabado. Guardou os materiais e se retirou rapidamente.

Passando pelos corredores, encontrou e cumprimentou mais colegas de curso. Novamente, lá na frente vinha Peter. Ele estava rindo à toa, como de costume, com o braço no ombro de uma amiga. Esta era a bela Nicole. Uma das beldades da turma dos dois, era loira de longos cabelos lisos e olhos azuis. Os pais sonhavam desde que ela era pequena que fosse modelo, mas a jovem nunca foi muito adepta de viver trancafiada numa realidade onde comer era pecado. Não que isso fosse perceptível. Seu corpo era realmente viável, embora tivesse curvas que não são tão bem quistas na passarela. Magreza em excesso sempre foi uma preferência maior. Era extrovertida e animada, qualidades somadas à todas as outras que faziam com que Chris se perguntasse como ela e Peter nunca foram além de uma amizade. Bem, provavelmente o mundo - ou pelo menos Saint Jordan - não aguentariam essa aliança. De qualquer jeito, no meio do caminho, ela saiu e parou para conversar com outras amigas, e Peter se aproximou sozinho.

-E aí, Christ? Como foi a aula?
-Chris. Chris, você sabe que eu não curto esse apelido!
-Hahaha, ok Chris, ok!
-Ah, cara, não tava com muita cabeça pra isso. Foram meio chatas, sei lá.

Bem, implicar com o apelido de Chris já era coisa batida para Peter, mas a forma como ele olhou após a reação do amigo realmente era chamativo. Acostumado com tudo e todos, não era comum  ouvir Chris dizer que não estava com cabeça para as aulas também não era algo do cotidiano. Peter sorriu, tentando disfarçar, mas o assunto foi realmente quebrado quando a gritaria dos calouros sendo puxados pelos veteranos ecoou no corredor. Todos sujos, enlameados e pintados, eles vinha fazendo uma fila diferenciada, em forma de "elefantinho". Agachados e com uma das mãos passando entre as próprias pernas, para o companheiro de trás segurar com uma das mãos e fazer o mesmo com a outra. Provavelmente estavam indo recolher as coisas, aos berros e esporros de seus veteranos. Eles vinham um pouco desequilibrados e enquanto passavam perto, um dos calouros tropeçou, caindo e empurrando seus companheiros. Chris e Peter que observavam, tentaram ajudá-lo, embora um pouco de receio por toda aquela lama os importunasse. Estendendo a mão, o retratista auxiliou uma espécie de abelha que provavelmente tinha caído da colmeia em uma trincheira. Provavelmente algo desse tipo fora a inspiração para a arte naquela jovem. Mas quando aquele par de olhos únicos o encararam, os olhos do artista se iluminaram.

sábado, 28 de agosto de 2010

O Pintor de Segredos - 1

Se tem algo que Chris realmente odeia, é acordar cedo! E não podia ser diferente, afinal, que jovem gosta de ter seus sonhos arrojados interrompidos pelo som metálico e repetitivo de um despertador? Fora o belo salto olímpico dado na cama devido ao susto. Naquele dia, ele não poderia ter feito diferente. Assustado, resmungou alguma coisa indistinguível, acompanhada de um súbito rodopio em sua cama, quase como se tivesse sido empurrado escada abaixo. Sem levantar o braço, apenas arrastando-o pela cama como uma lesma, aproximou a mão do botão cobiçado e desarmou aquela criatura infernal. Era segunda-feira, e o rapaz que tinha ido dormir 3h da madrugada. A missão era acordar para reiniciar sua rotina. O dia lá fora ainda estava escuro e por isso não era necessário abrir as cortinas. Essas nunca eram fechadas. Levantando-se como um verdadeiro zumbi, Chris se dirigiu até seu armário, abriu a porta e começou a selecionar a roupa. Olhou brevemente para um espelho na porta, mas pela forma como desviou o olhar rapidamente, não pareceu ter gostado muito do que viu. Separou uma calça jeans, uma camisa vermelha e um casaco preto com capuz e mangas compridas. Deixou-as esticadas sobre a cama, saiu do quarto e foi escovar os dentes.

Estudante de artes, de 18 anos, Chris está começando o terceiro período de sua faculdade, à qual passou em uma das primeiras colocações, isso devido a sua prova prática na qual mostrou o talento indiscutível que tem: desenhar. Desde pequeno, sempre teve grande paixão pelo lápis, o papel e a imaginação. Começou como qualquer criança, com aqueles desenhos comuns. Papai, mamãe, cachorro e a árvore do quintal. Aos poucos, foi evoluindo: Seus heróis, carros, paisagens, mulheres ( era uma modalidade que ele preferia não mostrar pros pais devido à sua timidez), e por fim, mostrou no que realmente era incrível! Com seus lápis, borrachas, papéis e outros acessórios, Chris era um gênio para desenhar retratos. É claro, podemos levar em consideração que seu berço nobre o ajudou. Nascido numa família de artistas, seus pais eram atores, de grande renome. Graças a isso e sem dúvidas ao seu ótimo desempenho, seus pais deram-no um voto de confiança, permitindo que ele morasse num pequeno apartamento sozinho. Não houve nenhum problema nisso. Ele não era um exímio cozinheiro, ou excelente organizador, mas seu "apê" ainda parecia um "apê".

Depois de escovar os dentes, ajeitar o cabelo (ou melhor, bagunçar de vez) e se arrumar, ele foi até a cozinha e preparou algumas torradas e um copo de leite. Tomou seu café-da-manhã rápido e arrumou as coisas para sair. Apesar de acordar cedo, ele morava um pouco distante da universidade e não gostava de chegar atrasado. Um típico aluno certinho. Não parecia ver problema algum nisso.

A caminhada até o ponto de ônibus intermunicipal não era muito longa. O dia estava um tanto nublado e o vento assobiava com um hálito de Halls preta. A luz começava a ganhar o asfalto e as calçadas. Algumas árvores mais salientes até expunham suas flores para dar um belo colorido ao quadro que era pintado naquela manhã. O jovem rapaz, que caminhava quase solitário até o ponto, gostava de andar admirando a paisagem, reparando em cada detalhe para alimentar sua imaginação esfomeada e compulsiva. Sua respiração profunda parecia querer captar a fragrância da grama que alguns quintais tinham, o perfume de cada flor e até mesmo o cheirinho da chuva que estava começando a cair. Quando alguns pingos pesados golpearam seus ombros, o garoto, um tanto quanto contrariado, jogou o capuz sobre seu des-penteado. Após cerca de 20 minutos, chegou no ponto de ônibus que interessava. Se encostou uma estreita pilastra que segurava a cobertura do ponto e ficou quieto, solitário. Esperava seu ônibus, que pelo horário, não demoraria a chegar. Puxou uma das moedas que tinha no bolso separada para sua passagem e começou a brincar, jogando-a para o alto com o polegar e pegando. Repetiu isso algumas vezes, e então, de súbito, parou ao observar uma sombra ao longe, na mesma calçada que ele estava. Era um homem, com barba mal feita e todo coberto por um sobretudo de couro. Ele olhou direta e fixamente para Chris, deixando fluir claramente seu desenteresse pelo ponto de ônibus. O jovem desenhista não achou aquilo um bom sinal. Olhou para os lados rápido e depois para trás, mas realmente aquela silhueta lhe parecia a coisa mais próxima que seus olhos conseguiam distinguir. E isso definitivamente não era animador. Uma enxurrada de adrenalina pareceu ter sido injetada na corrente sanguínea. Suas pupilas rapidamente se dilataram, e seus olhos não pareciam lembrar de piscar. O coração disparou e as pernas ficaram levemente trêmulas. Quando observou novamente o homem, o sobretudo que o cobria deixou fugir o brilho de um punhal preso ao cinto que sustentava suas calças. A única coisa que vinha à mente de Chris era "Corre. Corre. Corre!". Mas ele não o fez. Por outro lado, o homem estava se aproximando dele, e da mesma forma que o jovem, rastreou o raio que seus olhos podiam alcançar em todas as direções. Sua mão foi à cintura, na direção do punhal, e seu rosto se voltou para trás, vistoriando pela última vez suas costas. Nesse exato momento, Chris percebeu que era a hora de correr. Mas e se o homem percebesse e ficasse ainda mais interessado? O ônibus talvez passasse e o salvasse. Mas e se não fosse o caso? O garoto engoliu em seco mais uma vez, fechou os olhos e apertou a mão fechada. Abriu os olhos sério, sem medo (ou fingindo não ter) e encarou o homem que se aproximava. Por algum motivo, o homem estava com uma expressão diferente. Ele olhou exatamente para Chris, mas não tinha o mesmo olhar de antes. Tinha um olhar de curiosidade, porém não focado. Olhou para os lados novamente. Deu uma corrida até o ponto, no que Chris correu rápido para trás do banco onde as pessoas podiam sentar e esperar o transporte. Eram 2 metros de distância, mas de forma extremamente estranha, Chris se agachou e ficou atrás do banco. Não acreditava que fosse o suficiente pra ficar escondido, mas não se moveu. O homem fez um estalo de reprovação com a boca e se retirou chutando o chão.

O que aconteceu? Chris se perguntava. É claro que aquele homem queria, no mínimo, assaltá-lo. E também era óbvio demais que o banco não era tão grande para impedí-lo. Seja o que tenha sido, foi uma benção para o jovem. Talvez tenha cara de pobre. Agora, mais relaxado, sentou-se no banco, e em cerca de 5 minutos, ficou pensando a respeito. Então, quebrando seu momento de concentração, duas grandes laternas acesas se aproximavam. Era seu ônibus. Mais tranquilo e deixando escapar um sorriso no rosto, Chris fez sinal e pôs a outra mão no bolso para pegar a grana, praticamente rindo à toa. O ônibus não parou. Na verdade o motorista parecia ter ignorado o apelo do balançar de braços de Chris.

É, hoje é um dia para se chegar atrasado.